Fraudes e disputas familiares - a primeira eleição e a invenção de Riacho de Santana

Riacho de Santana, uma sesmaria em 1802, vila em 1936, distrito em 1948 e município em 1962. Essas mudanças exigiram que se inventasse Riacho de Santana. Isso porque os núcleos de povoamento (Pau D’arco, Riacho de Santana, Tabuleiro, Poço da Pedra...) não tinham ainda tanta ligação entre eles. 

O primeiro momento crucial para que Riacho de Santana viesse a se tornar uma cidade foi a construção da capela de São João Batista, nos anos 30. Durante este processo, percebemos o envolvimento de diversos grupos da sociedade, interessados em trazer algum progresso para a região. Manoel de Fontes foi um dos grandes pilares do movimento da construção da igreja, atuando na administração das finanças do projeto e hospedando algumas das primeiras missas em sua casa. Por outro lado, Alexandrina Cajé, rezadeira afamada e reconhecida como velha acolhedora, vivideira, agricultora, criadora, caçadora e cozinheira, representava, juntamente com sua enorme família, uma força também muito importante. A doação do terreno para construção do templo e de boa parte dos donativos foi feita por Alexandrina Cajé, e seus filhos e netos foram pedreiros/carpinteiros na obra. A partir de algum momento, também passam a ser realizadas missas em sua residência. É interessante a ocorrência de um processo judicial movido por litígio territorial na divisa entre as terras das famílias Fontes e Cajé. De um lado, Manoel de Fontes, do outro, Egídio Soares, genro da velha Alexandrina. A causa é ganha por Manoel de Fontes, e os Cajés nunca esqueceram nem a derrota e nem o nome do advogado dos Fontes: Dr. Israel Ferreira Nunes, de família original do Poço de Pedras e que foi deputado por muitas legislaturas. Talvez tenha sido a primeira peleja familiar de contornos políticos ocorrida em Riacho de Santana. 

A chegada dos irmãos Israel e Licurgo Ferreira Nunes ao poder é um episódio marcante da história de Riacho de Santana. O pai e o avô deles eram latifundiários  do ramo de algodão no Poço da Pedra e Catingueira, rendendo a eles uma grande lista de amizades em nossa região, além de muitas famílias economicamente dependentes, descendentes de africanos escravizados no vale do Santana e na serra de Luís Gomes. Licurgo foi prefeito de Pau dos Ferros, primeiramente nomeado (1946), em seguida eleito por voto direto para a gestão 1948-1953. Israel foi deputado estadual (a partir de 1948). O esforço para criar o distrito e o município de Riacho de Santana começa com os investimentos de Licurgo Ferreira. Entre os anos 40 e 50, Riacho de Santana ganhou escolas, galpão de feira e iluminação pública. Cada inauguração era um forró, e o nome ganhava força. Se Licurgo era quem começava a jogada, quem cabeceava a bola pro gol era Israel, na Assembleia. Uma vez que o lugar já tinha igreja, escola e até cemitério, a possibilidade de virar pelo menos um distrito era mais palpável. Em 1948 é promulgada a lei que cria o distrito de Riacho de Santana, (que incluía o então povoado de Água Nova). 

O grupo de apoio dos Ferreira Nunes em Riacho incluía além de Manoel de Fontes os nomes de Agostinho Neris, João Lagoa (foi vereador em Pau dos Ferros e sub-prefeito do distrito) e Nascimento Monteiro, tabelião do Cartório Único de Riacho de Santana. Era um grupo muito forte e apto ao favoritismo, não fosse o ingresso de uma figura influente que até hoje balança o equilíbrio político de uma cidade de interior: um jovem médico.

José Fernandes de Melo era um "forasteiro" que chegou ao Alto Oeste para atender a população, e que passou a protagonizar o cenário político regional, tornando-se deputado e, a partir de 1953, prefeito de Pau dos Ferros, após uma arrochada disputa eleitoral contra o grupo dos Nunes. 

É interessante uma entrevista do Diário de Natal com José Fernandes de Melo recém eleito, em 1952, em que ele cita a surpresa de ter tirado muitos votos no distrito Riacho de Santana, berço e sede eleitoral dos Ferreira Nunes. Ou seja, mesmo perdendo para os Nunes em Riacho de Santana, ele ressalta que esperava uma maioria maior dos adversários em sua terra natal. Demonstra a importância de Riacho de Santana para o poder político daquela família. 

No texto, "sua surpresa maior no caso eleitoral, foi o resultado das quatro urnas de Riacho de Santana, onde seus adversários esperavam vencer por 500 votos e venceram por apenas 44 sufrágios.

Dentre os apoiadores de José Fernandes de Melo em Riacho estava Manoel de Souza Lima, um caboclo nascido no Poção e criado na Fazenda Tradição, propriedade de Israel Ferreira Nunes no Tabuleiro do Padre, onde seus pais Pedro Souza e Elvira eram empregados. Na rotina da fazenda, à noite os interessados tinham oportunidade de assistir umas aulas particulares. Dentre os professores, tinha Ana “Dondon”, irmã de Israel e Licurgo, Zé Euclides e Cristino Ferreira, estes últimos chamados de farmacêuticos, pois, embora sem diploma, atuavam no comércio e prescrição de remédios. 

Além das aulas, Manoel de Souza acabou tendo acesso aos livros que Raimundo, irmão de Israel, trouxera da Bahia, onde se formara em Medicina. Enquanto os outros o viam lendo aquele mundaréu de letras miúdas, pensando que nada entendia, Manoel de Souza foi internalizando aqueles assuntos complexos, imagens de esqueletos e músculos humanos, e criou seu próprio e rudimentar conhecimento médico. O “dom” de Manoel de Souza encontrou na política o lugar perfeito para receitar e curar. 

Manoel de Souza fazia partos, arrancava dentes, receitava para todas as moléstias conhecidas pelo homem, tudo com o aval e o carimbo de Dr. José Fernandes de Melo. Nessa lida, Manoel de Souza foi chamado de tudo: de santo salvador a mentiroso, safado e charlatão. A verdade é que é difícil entender a história de Riacho de Santana sem entender as controvérsias da figura de Manoel de Souza.

Em 10 de maio de 1962, veio a coroação dos esforços políticos em prol da criação de novos municípios (novas possibilidades eleitorais e administrativas) com a criação do município de Riacho de Santana. O grupo orientado por José Fernandes e opositor aos Nunes era filiado ao PTB, partido que ironicamente fora criado por Getúlio Vargas junto com o PSD (que era o partido dos Nunes) para abrigar a classe trabalhadora urbana em seu reduto político. Destacamos os seguintes petebistas santanenses: Cirilo Pedro, latifundiário, dentista prático e arrancador de dentes e os comerciantes Pedro João, Valdemar Fernandes e Antônio Esperidião.

Sob influência de José Fernandes, Cirilo Pedro foi nomeado prefeito interino durante o ano de 1963 e a eleição foi marcada para 1964. Foi disputada por Manoel de Souza e Chico Nunes: o filho dos empregados da fazenda Tradição contra o filho dos patrões. Os vices eram Rafael Soares pelo PTB e Nascimento Monteiro pelo PSD. Naquele período, mais de 500 títulos eleitorais novos foram solicitados para Riacho de Santana, o que foi julgado como sendo proveniente de certidões eleitorais falsas pelo TRE do estado, que anulou todas as inscrições de eleitores excedentes às 500 iniciais. A decisão foi contestada em recursos pelo PSD, provavelmente maior interessado naquele volume de alistamentos e transferências. 

Noticiário do Diário de Natal de 1963, registrando os recursos movidos pelo PSD contra a decisão do TRE em anular inscrições eleitorais em Riacho de Santana.

O resultado da eleição de 1964 foi engraçado para uns, trágico para outros. Chico Nunes perdeu pra Manoel de Souza e Rafael Soares venceu. Assim, o ninho político tão bem esquentado ao longo dos anos por Licurgo e Israel foi entregue para um dos filhos dos empregados da fazenda e pro filho daqueles que morriam de raiva de terem sido derrotados pelos Nunes nos tribunais. A política tem dessas ironias.


Manoel de Souza Lima (PTB), primeiro prefeito eleito pelo voto em Riacho de Santana.

Francisco Nunes (PSD), derrotado em 1964, era sobrinho de Israel e Licurgo.


Algumas notas sobre a gestão de Manoel de Souza devem ser feitas: na época a administração municipal não estava sujeita a fiscalizações, de forma que o prefeito e seus asseclas se comportavam como bem entendiam. Portanto, a existência de irregularidades era a norma. Somada a personalidade desprendida de Manoel de Souza, tal realidade produziu um grande número de problemas fiscais, mas que a princípio não despertariam consequências. 

Em 1968, pouco depois da publicação do AI-5, 221 municípios tiveram suas cotas suspensas devido irregularidades na prestação de contas e Riacho de Santana figurava dentre tais. Antes de encerrar o período oficial de gestão, Manoel de Souza fugiu para Rio Branco-AC, preocupado com o clima de perseguição instalado no país e seu passado PTBista. Boatou-se intensamente que a decisão fora influenciada por membros do grupo, que interessados em neutralizar a popularidade de Manoel de Souza teriam ameaçado entrega-lo as autoridades. Manoel de Souza deixou esposa, filhos e afilhados incontáveis. Repetindo o que foi dito, a controversa figura de Manoel de Souza é importante para entender nossa controversa política.

Notícia do Diário de Natal, maio de 1968.

REFERÊNCIAS
Diário de Natal (1880-1978) - disponível na Hemeroteca Nacional
FERNANDES, B. SOARES, J. Da aroeira à cidade, nos caminhos do Rio Santana. 2010.

Comentários


  1. "O resultado da eleição de 1964 foi engraçado para uns, trágico para outros. Chico Nunes perdeu pra Manoel de Souza, mas Rafael Soares venceu (na época eram votados em separados".
    Há um erro: Rafael Soares foi candidato como Vice de Manuel de Souza. O Vice de Chico Nunes era Nascimento Monteiro. Pedro João foi candidato a Vice de Antônio Esperdião, na segunda eleição. O candidato da oposição foi Sátiro Nunes, filho de Israel Nunes.

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