As histórias esquecidas de Riacho de Santana - parte 2: Havia uma povoação indígena no Caripina?
(Continuação)
Há uma afirmação de Câmara
Cascudo de que o massacre dos índios em Portalegre foi o fim do índio no RN.
Hoje sabemos que ocorreu na verdade uma criminalização da figura do
índio, que acabou se convertendo na figura do "caboclo
brabo", caçado a casco de cavalo e dente de cachorro, história
universalmente presente nas famílias do sertão, contada e recontada infinitas
vezes. O que realmente ocorreu foi que os índios, fugindo da perseguição em
Portalegre, tentaram alcançar a província do Ceará. Nesse movimento, muitos
fazendeiros caçaram ativamente os nativos, usando-os como trabalhadores ou
tomando as mulheres como esposas. No percurso de Portalegre para o Ceará, um dos caminhos é por entre as serras do Vale do Rio Santana, tão bem conhecidas dos povos indígenas, utilizadas como abrigo durante as cheias e esconderijo contra os invasores.
Consta em documentos oficiais da Capitania do Rio Grande do Norte, uma sesmaria no nome de Mathias Fernandes Ribeiro, na localidade Riacho de Sant'Anna. O requerimento foi feito em 20/07/1802, alguns anos depois da Guerra do Açu e antes dos eventos ocorridos em Portalegre. O lugar é assim descrito:
As terras requeridas estendiam-se em torno do local conhecido como Direito e Riacho de Sant'Anna. Confrontavam-se com o rio do Peixe e com o Tabuleiro do Padre. Ao norte com a serra de São Jose e ao sul com a serra Luís Gomes, anteriormente chamada de Bom Jesus.
Descrição, portanto, mais que perfeita da localização atual do município de Riacho de Santana, levando em consideração que a precisão geográfica dos limites territoriais das sesmarias não era sempre perfeita e que a menção ao Rio do Peixe pode ter sido apenas uma alusão a proximidade com a divisa entre RN e PB. Mais interessante ainda é a citação do Tabuleiro do Padre já àquela época e como sendo propriedade diferente da denominada de Riacho de Sant'Anna. Infelizmente, não foram achados outros documentos sobre o Tabuleiro, e as ideias a respeito da origem de seu nome permanecem meramente especulativas. Teria existido ali em algum momento uma Missão chefiada por padre jesuíta que tenha sucumbido diante da violenta ofensiva dos bandeirantes paulistanos na Guerra do Açu?
A Serra de São José é o limite natural de Riacho de Santana com o município de Coronel João Pessoa e a Serra de Bom Jesus o limite natural com o município de Luís Gomes. Ainda sobre o documento de 1802, é descrito que Matias Fernandes alegava ser o descobridor das terras e seu ocupante de fato, com criação de gado e moradia estabelecida. Ao oficializar a concessão, o Rei exige a ocupação do lugar, a abertura de pontes e estradas e o respeito aos limites das terras dos índios. Onde teriam vivido tais índios?
Açude Caripina quando atingiu volume morto em 2015. Foto: Blog Nossa Riacho de Santana |
Circula entre os moradores do Paul e do Poço de Pedras a história seguinte:
O primeiro morador oficial daquelas paragens foi um capitão chamado Joaquim Antônio de Carvalho, que havia recebido a doação da sesmaria de Riacho de Sant'Anna por volta de 1840. ainda explorando a região inóspita e selvagem, encontrou uma “maloca de índios” destruída, com vestígios de incêndio. Em uma das versões, esse lugar ficava no serrote do Caripina, e em outra ficava entre o Poção e a Serra das Almas. A “favor” da versão do Caripina, as lendas fantasiosas que vez ou outra alguém resgata para puxar assunto, que diz que o Caripina era um antigo cemitério. O certo é que vagando por entre os resquícios da comunidade que outrora existira, Joaquim Antônio encontrou duas meninas de pele avermelhada, com a boca cheia de bagaços, na tentativa de matar a fome. Com muito custo, Joaquim Antônio teria pego as duas índias e trazido pra sua residência no Paul. Dizem que chegou com as mãos sangrando das mordidas que recebia das duas. Uma vez dentro da família Carvalho, elas foram batizadas como Maria Antônia da Conceição e Florentina Margarida da Conceição, receberam educação religiosa e formal, e se casaram com dois membros de famílias aristocratas. Maria Antônia casou-se com José Felipe de Carvalho, filho do próprio Joaquim Antônio, e Florentina Margarida casou-se com Vicente Ayres Affonso, conhecido como Vicente Marinheiro. Ambas as famílias ficaram residindo no sítio Paul.
Florentina Margarida foi mãe de 13 filhos, dentre os quais Josefa Florentina da Conceição, conhecida
como Zefa Santa, notória rezadeira e uma das mais antigas do local. Filha de
índia, Zefa deve ter tido influência do encontro do mundo não-cristão de sua
mãe com o mundo católico dos Carvalhos na criação de seu repertório de
benzedeira. Entretanto, não sabemos concretamente se Florentina Margarida era
benzedeira também e se ela teria sido a professora de Zefa Santa. Na
descendência, ainda teve Antônia Plácida, neta de Florentina, que se sagrou
como rezadeira afamada, bem como Dona Chiquita e outras.
Josefa Florentina, conhecida como Zefa Santa, grande rezadeira. O retrato não fez jus a cor de sua pele, que era característica da descendência de sua mãe. Foto cedida por Isabel Aires Sonoda (Zizi). |
Antônia Plácida, conhecida como Mãe Tonha, também rezadeira, neta de Florentina. Foto de arquivo pessoal. |
O nome Caripina, dado ao serrote
e posteriormente ao açude construído no local, também demonstra a presença dos
povos originais. Apesar de bastante conhecido pelo povo de Riacho de Santana,
Caripina é usado pouquíssimas vezes na língua portuguesa, sendo nome de uma
cachoeira em Felipe Guerra – RN e alguns sítios espalhados pelo Brasil. Além da
possibilidade de ser uma variação de carpina ou carapina (sinônimo de
carpinteiro), encontramos o termo Caripina no dicionário do povo otomaco, etnia
de povos originais da inóspita e longínqua região do rio Orinoco na Venezuela,
conhecida pela bravura, atualmente considerada extinta, devido profunda
dispersão e extermínio acentuado ao longo dos séculos 18 e 19. A palavra
Caripina significa Caribe no idioma otomaco, nome dado aos povos indígenas das
ilhas caribenhas vizinhas que viviam em conflito constante com os otomacos. Falta
a peça que poderia unir duas histórias tão distantes de povos que pereceram
diante do poderio militar dos europeus. Entretanto, como Florentina e Maria
Antônia se tornaram matriarcas de uma imensa família, a investigação da origem geográfica do DNA mitocondrial da população de Riacho de Santana que descendem delas por
via materna poderia dar um fim ou início a esta possibilidade aparentemente fantasiosa.
Embora Maria Antônia e Florentina
tenham sido acolhidas por uma família branca e de posses, a violência cometida
contra os povos originais não pode ser simplesmente esquecida. A memória delas
e de suas tradições precisa se manter viva para que de alguma forma guiem a
construção de uma identidade e de um projeto político e social igualitário e
fraterno. Além disso, não foi em todos os casos que os proprietários rurais
tiveram um encontro agradável com seus antigos perseguidos. (Continua...).
Muito bom!
ResponderExcluirMeus avós paterno aparece ai sou neta de Carmina Joaquim conhecido como Joaquim marinheiro.um meu pai e Paulo aires
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