As histórias esquecidas de Riacho de Santana parte 3 - Uma sociedade religiosa secreta, perseguida pela cruz e pela espada

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Continuando a narrativa (post anterior), lembramos que uma das índias do Caripina, Maria Antônia, casou-se com o herdeiro mais velho do dono do Paul, que se chamava José Felipe.
Além da presença da religiosidade dos povos nativos, a família Carvalho possuía ainda um aspecto extra em sua vida, pouco conhecida, revelada durante a pesquisa de monografia do conterrâneo Cleonildo Costa, mais conhecido por aqui como Toinho de Juvenal. Entrevistando mulheres da Vila São Bernardo, em Luís Gomes e do Paul, Cleonildo recuperou a memória de uma história fascinante que ouvira em sua infância, sobre um grupo secreto de homens encapuzados que se açoitavam na madrugada, e produziu ciência a partir dela dentro do curso de Letras da UERN. 
A Irmandade dos Penitentes ou Ordem dos Penitentes foi/é um movimento religioso formado por pessoas católicas que expressavam sua fé por meio de práticas de auto-flagelação. A origem exata desses grupos se confunde com a história da penitência dentro do catolicismo. Quando a Igreja invadiu o Brasil junto com os portugueses, o resultado foi um catolicismo muito mais misto e místico do que romano e centralizado. Após o espalhamento da palavra de Jesus Cristo contida na Bíblia por entre os mais variados rincões do Brasil, nos mais diversos grupos étnicos e numa população predominantemente massacrada pela pobreza, escravidão e outras formas de opressão, o catolicismo floresceu com fortes marcas ameríndias e africanas, especialmente no sertão nordestino, onde padres eram muito poucos. Nossas tradições e devoções a santos são fortes até hoje por causa disso. Segundo relatos orais, foi por influência da epidemia de cólera que grupos de pessoas começaram a se reunir e praticar a penitência por meio da flagelação para rogar a Deus pela saúde e pela vida. Entretanto, além da epidemia de cólera existia no sertão uma endemia de pobreza e desigualdade. A partir do momento em que as pessoas passaram a se encontrar sob a forte motivação de atingir a salvação por meio da dor e da penitência, passaram também a se ajudar mutuamente e encontrar saídas que não cabiam nem na Igreja e nem na ordem social esperada pela elite. 
Em Riacho de Santana, no sítio Paul, ocorriam encontros de um grupo de penitentes liderados por Antônio Joaquim de Carvalho, conhecido por Antônio Cego, filho mais novo do Capitão Joaquim de Carvalho. Segundo os relatos colhidos, Antônio Cego avisava que iria receber os penitentes, e ordenava que todos os presentes em casa se retirassem para que a chegada não fosse vista. De longe, as crianças mais curiosas viram o monte de homens encapuzados, como que cobertos por lençóis, arrastando correntes enquanto o velho balançava um sino. Durante a noite toda eles rezavam e entoavam hinos e "incelenças" em língua portuguesa mas também em latim, e os não-penitentes ficavam só ouvindo as cantigas e o barulho das navalhas batendo na carne, do lado de fora da casa ou em outros cômodos. Na manhã seguinte, a casa amanhecia cheia de sangue. A população entendia que aqueles rituais eram para pedir benefícios, principalmente a chuva. Os líderes dos grupos de penitentes, responsáveis por usar essa sineta, recebem o nome de decurião. Nos relatos colhidos na monografia de Cleonildo, outros dois nomes aparecem: Pedro Felipe e Cosme Felipe, filhos de José Felipe e Maria Antônia, sobrinhos de Antônio Cego. Juntos do tio, viviam se reunindo e entoando cantigas que a maioria das outras pessoas sequer entendia o significado das palavras.


Foto do acervo iconográfico de 1986, mostrando casa antiga do sítio Paul que pertencia a família Carvalho.


Sinete que era utilizado pelo decurião do grupo de penitentes da Serra de Luís Gomes. Fonte: Referência 1. 

Outro penitente, que não aparece nos relatos do Paul, foi João Romualdo de Oliveira, nascido na Carapuça, aos pés do serrote do Bom Será, hoje município de Água Nova mas que pertenceu ao Distrito de Riacho de Santana de Pau dos Ferros durante toda a primeira metade do século 20. A saga de João Romualdo o levou ao Ceará, não só o lugar de origem da maior parte dos grupos de penitentes, como também o centro disseminador e onde as práticas religiosas mais chamavam a atenção dos poderosos. João Romualdo pertenceu ao grupo do Beato José Lourenço, um penitente paraibano que sob influência do Padre Cícero de Juazeiro organizou uma comunidade fraterna primeiramente no sítio Baixa da Anta e depois no sítio Caldeirão, município do Crato. As pessoas viveram naqueles locais uma experiência social e política completamente diversa, onde tudo pertencia a todos, o solo era bem tratado, a alimentação era garantida e tudo isso acompanhado de muita reza e oração. A maior parte dos moradores, inclusive o próprio José Lourenço, eram pretos e caboclos. 
Quando a Igreja começou a perder os fiéis para aquela comunidade e os coronéis a perder sua influência política e econômica sobre aqueles que se libertavam, iniciou-se uma campanha para destruir o povoado do beato José Lourenço, alicerçada no medo do comunismo sentido pelas classes médias. Além de acusados de subversivos, os habitantes foram acusados de heresia, com a criação de uma grande mentira na qual um boi doente que recebia cuidados especiais dos moradores foi retratado na mídia como um ídolo demoníaco que era adorado por aquela gente. Não tardou para que uma campanha militar com participação do Exército e desapropriasse os sertanejos de Caldeirão, de forma absurdamente bruta e desproporcional, levando a aproximadamente 700 mortes, no ano de 1937. Em seguida perseguiu os remanescentes, inclusive com ataques aéreos. O beato José Lourenço ficou foragido e veio a falecer de peste bubônica 13 anos depois. Um dos poucos sobreviventes dos dois massacres foi João Romualdo, que depois de sofrer tantas violências extremas, passou a vagar pelas matas do estado do Ceará, adentrando o seu estado natal posteriormente. Sua existência misturou-se com a lenda do homem selvagem, cabeludo e nu que andava nas serras assustando a quem visse tão horrorosa figura. Também 13 anos depois do massacre, foi encontrado e levado até um asilo em Natal, quando foi feito o seu reconhecimento. O caso ficou conhecido em todo o país. Interessante notar que nos jornais é dado ênfase ao fato de João Romualdo ser um caboclo.

Notícia do Diário da Noite, jornal do RJ, sobre o caso de João Romualdo.


Enviado de volta ao distrito de Riacho de Santana, ficou residindo no Sanharão, hoje sítio do município de Água Nova. Faleceu em poucos anos, e a história de sua sobrevivência, que é também a sobrevivência daqueles que estão a margem da sociedade e necessitam fazer o dobro para conseguir a metade, foi resgatada por outro santanense, o escritor Jose Sávio Lopes, que em contato com parentes de João Romualdo e fazendo pesquisas em livros e periódicos, reconstruiu a saga do penitente, e criou a obra literária "João Romualdo e o inferno no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto", cheia de detalhes e tramas que perpassam por João Romualdo, José Lourenço, Padre Cícero, Lampião e a Coluna Prestes, dentre outros. Lembrar dos nossos penitentes, pretos e caboclos, é necessário para honrar a dor que lhes foi infligida tanto pela própria fé quanto pela maldade dos homens de cruz e de espada. João Romualdo e Antônio Cego merecem um lugar especial no patrimônio histórico e cultural de Riacho de Santana, de Água Nova e de toda a nossa região. 

Referências:

1. COSTA, A. C. da S. Dor e alegria no jogo da fé: memória e identidade em narrativas de penitentes de Luis Gomes e Riacho de Santana. Pau dos Ferros, 2010. 125f. Monografia (Graduação em Letras) Campus Avançado “Professora Maria Elisa de A. Maia”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2010.

2. MACHADO, R. M. Entre cantos e açoites: memórias, narrativas e políticas públicas de patrimônio que envolvem os penitentes da cidade de Barbalha - CE. Dissertação (Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Preservação do Patrimônio Cultural). 

3. Vivia como Adão nas matas do Rio Grande do Norte. Jornal Diário da Noite, Rio de Janeiro. 19/11/1946. 

4. LOPES, J. S. João Romualdo e o inferno no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Natal: 8 Editora, 2019.

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