As histórias esquecidas de Riacho de Santana parte 4: as crianças que foram vendidas por duas cuias de farinha

(continuação...) 

Ao contrário do que o senso comum supõe, a escravidão no Brasil durou bem além de 1888. Mesmo após a abolição e a proclamação da República, as pessoas continuaram escravizando, utilizando as mais diversas camadas de maquiagem para tentar esconder a realidade cruel. A pobreza extrema da parte da população que obteve liberdade mas não obteve direitos sociais tornou ainda pior essa situação. Alguns dos fenômenos observados a partir desse período e até os dias atuais são a escravidão disfarçada de acolhimento, o trabalho sob condições desumanas em troca de um prato de comida e a quitação de dívidas contraídas utilizando pessoas como moeda de troca. É nesse instante que a história contada tantas vezes por Francisco Antônio do Nascimento - universalmente conhecido como Cinino - na calçada de sua casa, vem a mente como exemplo da perpetuação da escravidão aqui em nossas terras.
Cinino conta que seu avô, Pedro Choto, teria vendido os três filhos - Cícero, Manoel e Santana - por duas cuias de farinha. Nas palavras dele, "se mandou e pronto, até ontem uma hora dessas". 
Por curiosidade, percorri um caminho documental e oral para saber mais sobre Pedro Choto. O primeiro Choto de Riacho de Santana foi Antônio Pereira Souto, um caboclo ligado às primeiras famílias do Paul, já tratadas nos posts anteriores  (aqui e aqui) que recebeu umas terras no entorno do Alto que divide as terras dos Moisés e as dos Marinheiros. Ao português local devemos a transformação de Souto em Choto. Antônio Choto casou-se três vezes, formando grande família. Pedro Choto era filho de seu segundo casamento, com Raimunda Francisca da Conceição. Da primeira família, com Vicência Ferreira, havia Manoel e José Choto. Este último se envolveu numa briga com Felisberto Choto, filho do segundo casamento e portanto seu meio-irmão. Infelizmente estavam armados de foices, e o resultado foi uma tragédia que banhou de sangue o Alto dos Chotos, o primeiro de outros fratricídios que viriam a ocorrer na sinistra região. Em 1908, já bem velho, Antônio Choto ainda se casou com Raimunda Lyra, tendo ainda muitos filhos e filhas. 
Pedro Choto se casou em 1921 com Maria Ferreira, filha de João Ferreira e Ana, pertencente a família Carvalho. Maria era mais velha que Pedro, viúva de Cândido Bonifácio de Carvalho, conhecido como Cândido Matias, herdeiro de terras no Paul devido ter sido casado antes com Donata Coelho. Assim, Pedro Choto, caboclo e trabalhador braçal, tornou-se herdeiro de um bom pedaço de terra que vinha passando de mão em mão, circulando entre os membros das famílias Carvalho e Coelho. 
Segundo Cinino, Maria Ferreira faleceu antes de Pedro sumir. As três crianças viviam apenas com o pai quando foram supostamente vendidas por ele. Considerando os anos de nascimento dos três (Cícero em 1925, Santana em 1928 e Manoel em 1930), torna-se evidente que atravessaram a seca de 1932, uma das maiores da história, que cursou com perdas econômicas e emocionais catastróficas, e disparou movimentos migratórios intensos dentro do nordeste. Foi nessa época que muitos de Riacho de Santana foram em direção ao Maranhão e por lá ficaram desde então. Após o ano seco, suas consequências ainda se fizeram sentir por muito tempo. Foi nessa época, na segunda metade da década de 30, que Pedro Choto sumiu e deixou os filhos como propriedade de Lucas Ferreira no sítio Santo Antônio.
Lucas Ferreira da Silva era dos Ferreira de Luís Gomes e ficou conhecido como dono de uma fazenda no final do Santo Antônio, às margens da estrada que leva para o lado ocidental do Paul. Casou-se em 1920 com Hosana Lagoa, filha de família influente do Pau d'Arco e Espaduado. Foi ele quem aceitou os três meninos como pagamento por Pedro Choto e devolveu duas cuias de farinha, segundo a versão mais contada da história. Qual teria sido o destino de Cícero, Santana e Manoel se não tivessem sido recuperados por familiares? Trabalhar de forma forçada até a maioridade (ou a morte)? Tudo parece possível numa realidade em que três crianças são utilizadas e aceitas como pagamento, como moeda. O povo do Paul não aceitou a crueldade e intercedeu. Santana foi criada por Maria Santos e Zeferino Felipe, no Santo Antônio. Manoel e Cícero foram criados por Tibúrcio Ferreira, tio da finada mãe deles, no Paul. Ficaram conhecidos como Mané Preto e Ciço Preto. Ciço se enveredou pelo Maranhão, mas Manoel e Santana permaneceram em Riacho de Santana, casaram-se com pessoas daqui e geraram grandes famílias. 

Manoel Ferreira da Costa (Mané Preto). Foto cedida pela família.



Diga-se de passagem, apesar da crueldade enfrentada em tenra idade, Mané Preto e Santana criaram gente de bem e feliz, citando aqui, além de Cinino, muito trabalhador e violonista habilidoso, a figura inesquecível de Tia Có (in memoriam), professora e cantora querida, que deixou muitas saudades. Ambos são filhos de Mané Preto e contribuíram muito para a cultura de Riacho de Santana, sempre relembrando canções marcantes e interpretando-as de forma original. Pode-se dizer que a resistência deles aconteceu e acontece também com alegria e música. 
Terminamos essa postagem com um vídeo do acervo pessoal de Jarles, filho de Cinino, tocando violão enquanto o pai canta "Ilha de Marajó" de Zito Borborema, durante uma "brincadeira" de calçada. 
(Continuaremos com novas histórias mais adiante)




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